domingo, 23 de dezembro de 2012

AI, MOURARIA

Um dia por entre as Ruelas de Lisboa

A Mouraria é um bairro muito popular de Lisboa, onde nasceu o fado e surgiram dez de cada dez fadistas. Historicamente - após a expulsão dos árabes das terras lusitanas - foi um lugar onde muçulmanos (cristãos-novos) e cristãos passaram a viver e conviver em total harmonia. O nome de Mouraria é em alusão aos Mouros, como eram chamados os árabes que ocuparam a Península Ibérica por quase mil anos. Eu fui apresentado a esse recando de Lisboa de uma forma que marcou para sempre a minha alma (oportuno, já que o fado fala à alma).

Na minha primeira estada em Lisboa fiquei hospedado num pequeno hotel nos arredores da Praça do Marques de Pombal. O centro histórico da capital lusitana aparentemente não é tão grande assim, então resolvemos (estava acompanhado) conhecê-lo caminhando por entre suas ruelas. Foi uma decisão acertada por permitir contemplássemos melhor a bela arquitetura da cidade, mas, como veremos à frente, tornou-se arriscada para dois turistas desavisados e tomados por tanta beleza.

Quando saímos do hotel e tentamos cruzar a Rua à frente fomos obrigados a aguardar um pouco para que um bondinho com ares antigos passasse se arrastando por trilhos quase imperceptíveis. Se arrastando, porque  sua velocidade nos permitia acompanhá-lo de tão lento. Cruzamos a rua e caminhamos até um bar numa esquina qualquer da Avenida Liberdade para tomarmos alguma coisa. Pedi um 'chope' no que não fui compreendido. Lá não se chama chope àquela cerveja espumada que sai direto do barril. É cerveja, mesmo. Confesso que pouco ou quase nada entendia daquele português pronunciado pela metade, com o qual eramos confrontados nos lugares. Mesmo assim resolvemos continuar. Tínhamos como destino o Jardim Botânico de Lisboa que ficava numa parte alta à direita de quem desce a Liberdade em direção ao Tejo.

No final da Avenida pegamos uma rua qualquer em direção ao alto. Estávamos, sem saber, pisando na história das mais antigas de Portugal; estávamos numa ruela do Bairro do Chiado. O mesmo que sobreviveu ao terremoto de 1º de novembro de 1755 que matou mais de 10 mil lisboetas e arrasou suas construções. Mas isso é uma outra história de que falaremos em outra oportunidade.

Estamos parcialmente perdidos entre obras de arte daquele 'museu a céu aberto', e precisamos encontrar o rumo do Jardim Botânico. Vamos começar por retornar às ruelas do Chiado. São ruas estreitas que mal permitiria a passagem de uma carroça de tração animal. Estreitas, escuras, com calçamento de pedras brutas e sem calçadas e nem por isso, menos bela. Suas construções de dois e três pavimentos são admiravelmente lindas, com suas sacadas e janelas gradeadas e sempre um passo à frente de suas fachadas. Estamos deslumbrados com tanta beleza. Eu mesmo estou em êxtase, viajando na história que, até então, só encontrara nos livros. O curioso foi descobrir que aquelas construções do passado abrigam agora modernos restaurantes, livrarias e escritórios em seus interiores. O sol já cruza os céus de Lisboa e estamos muito fora do nosso destino, precisamos urgentemente retomar a direção do Monte Olivete, onde fica o nosso Jardim.

Ual!... Que maravilha!

Essa é a reação que tenho diante daquela pequena área (4 ha) de flora amplamente diversificada. Ademais, forma um contraste com todo aquele cinza que acabáramos de ver nas fachadas das ruas estreitas do Chiado, que atravessamos. Aquela beleza verde foi um grande prazer para os meus sentidos. Agora somos embalados por uma brisa suave e pura que sopra do Tejo. Ficamos um bom tempo contemplando aquela maravilha.

A altura do Monte Olivete nos permitiu uma visão completa da parte antiga de Lisboa. Reclamou-nos especial atenção uma velha construção no monte vizinho. Era o Castelo de São Jorge tomado aos Mouros quando da expulsão destes das terras lusitanas. Resolvemos visitar aquelas muralhas antigas que dominam o morro.

Descemos o Monte Olivete e mais uma vez nos encontrávamos na Avenida Liberdade, colada à Praça dos Restauradores.

Estamos exaustos. Resolvemos pegar um taxi para nos levar ao Castelo. Foi uma viagem rápida. Chegamos e logo tratamos de dissecar suas entranhas. Pessoalmente me senti transportado para aqueles anos de 1300, em que foi construído (o Castelo que vemos hoje é fruto de vários restauros ao longo dos tempos, claro; fieis aos traços originais). De suas muralhas podíamos contemplar a bela Lisboa e a mansidão do Tejo sendo engolido pelo mar. Pude imaginar Cabral partindo daquelas margens com destino a uma terra desconhecida. A beleza é tanta que não demos conta de que eram quase 7 horas da noite. O sol se mantém por mais tempo nos céus da Europa, por isso mesmo não notamos o adiantar das horas. Procuramos um taxi para retornamos à Liberdade. Não encontrado resolvemos encarar a descida à pé, afinal o Centro estava logo ali. Bastava atravessar aqueles prédios que ocupavam a face do morro. Ledo engando. O maior susto que tive no Velho Mundo estava para acontecer.

Decididos a alcançar o centro de Lisboa, começamos a descida do monte que abriga o Castelo de São Jorge. As ruas que inicialmente pareciam curtas foram se alongando em curvas ao redor da montanha nos deixando tontos e desnorteados. Quando chegamos ao meio do trajeto ouvimos um grito desesperado: "Os rúulegans, os rúulegans. Cuidado com os rúulegans". Era uma portuguesa gorda, trajando um longo vestido de pregas talhado num tecido estampado de bom gosto e beleza duvidosos. Ela chamava a nossa atenção para um grupo de Ingleses que subia aquela viela. - "Voltem, voltem e entrem aqui, pois eles podem bater em vocês e tomar-lhes os pertences". Retornamos apavorados ao encontro daquela bondosa senhora. Elas nos contou barbaridades patrocinadas pelos 'hooligans'; ingleses violentos, que ficaram famosos com o massacre de 96 torcedores do Livepool. Em seguida nos mostrou umas escadarias estreitas e de batentes disformes, que nos levaria com mais segurança ao pé do morro. O que mais me apavorou foi a possibilidade de levar uns tabefes dos ingleses, pois de pertence eu só tinha uns poucos dólares e uma velha Zenit. Zenit era uma máquina fotográfica de fabricação russa que pesava proximamente dez quilos. Na verdade não era um pertence, era uma arma em minhas mãos. Retomamos a descida pelo local indicado pela velha senhora, por entre aquelas construções altas e de paredes mal conservadas, com seus varais de roupas coloridas cruzando-lhes as 'faces enrugadas'. Os cordéis iam de uma janela à outra. Todos lotados com roupas ao vento. É de uma beleza bizarra, aquela vista. Não condiz em nada com o estereótipo que eu construí dos Europeus, e que está guardado no meu imaginário.

Chegamos à Avenida Liberdade. Procuramos um restaurante para almoçar e jantar ao mesmo tempo. Estamos totalmente perdidos no tempo e no espaço - parece que no dinheiro também, precisávamos economizar dólares pois a Europa apenas começara - e procuramos nos orientar com o garçom do lugar. Contamos parte do que acabara de se passar na descida do Castelo e ele nos informou que aquele lugar era o Bairro da Mouraria onde, até hoje, ainda vivem descendentes dos Mouros que lhe emprestam o nome. Foi na Mouraria que nasceu o FADO.

Perfeito! Aquela visão do Tejo se derramando no Atlântico, somada ao encontro de cristãos nativos com árabes de terras distantes, e àquela paisagem que é um convite constante para que olhemos ao longe só poderia desaguar no culto à SAUDADE. Na realidade, a história e a natureza conspiraram juntas para que a Mouraria parisse um lamento tão profundamente triste, mas igualmente marcante: o FADO.

Dizem que a palavra 'saudade' só existe no idioma português. Quem sabe ela não é filha, também, daquele caldo cultural que é 'a Mouraria'.

A Mouraria que deu o fado a Portugal e ao mundo também fez brotar a quase totalidade das mais belas canções do gênero e todos os grandes fadistas da história. Ironicamente foi no Rio de Janeiro (Brasil) que nasceu aquela canção que homenageia o berço do fado: Ai, Mouraria.

"Ai, Mouraria
da velha Rua da Palma,
onde eu um dia
deixei presa a minha alma
..."

          FONTES (imagens):
         https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhgeJpD5kXG84U0UMtTWOz1imgslp0tIkrBBuLnVfnuJ54JtIqfNZMVAa4VeD6zYy9Exh0xNNW2qNDSQ83aD4qWJdlZl-lpLPb0a7w3SKMow1ovEtO7lE4VNNsBkLk9gwskcRwxhp0Oy-I/s1600/mouraria.jpg
       http://clube11raizes.files.wordpress.com/2010/12/botanico1.jpg
         https://encrypted-tbn2.gstatic.com/images?q=tbn:ANd9GcQXJ1tIa-AVnHkW4gedZDfupSIiIuS3dku3DZvXV-ZiWUTSweHu

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