quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

O CANTO DAS SEREIAS: O BRASIL SE DISTANCIA DE SUA ÍTACA

Em seu Canto XII, a Odisséia de Homero ensina à humanidade de que não se deve ceder à tentações passageiras.
Retornando a Ítaca, seu torrão natal, Ulisses chega à ilha da deusa Circe. A deusa-feiticeira alerta o nosso herói para os perigos que enfrentará ao passar pela ilha das sereias. Orientou-o a não ceder aos encantos das habitantes do lugar, para tanto, só ele poderia ouvir os cantos das sedutoras sereias.
Avisado do perigo, cioso de suas responsabilidades e determinado a retornar à Ítaca em segurança, o grande Ulisses ordenou a cada um dos seus companheiros de viagem que tapassem os ouvidos com cera. Pediu também que o amarrassem firmemente ao mastro principal da nau e, por mais que ele implorasse, jamais o desamarrasse enquanto estivessem cruzando o mar das sereias.
"... vem para perto, famoso Odisseu, traz para cá teu navio, que possas o canto escutar-nos. Em nenhum tempo ninguém por aqui navegou em nau negra, sem nossa voz inefável ouvir, qual dos lábios nos soa."
Atendidas suas ordens, apenas Ulisses pode ouvir o chamamento irresistível daquele canto. Debateu-se, gritou para os companheiros, implorando que atendessem ao chamamento das sereias e atracassem naquela ilha encantada, lutou bravamente na tentativa de se libertar das amarras. Os companheiros, previamente avisados do perigo, permaneceram firmes e obedientes às instruções dadas pelo herói quando do início de tão perigosa travessia. Ancorar o navio naquela ilha os transformaria em prisioneiros, e Ulisses jamais retornaria a sua terra querida.
Vencido o perigoso mar das sereias, os companheiros de Ulisses retiraram as ceras dos ouvidos e o libertam das amarras. A salvo das tentações, o nosso herói prossegue em sua jornada épica até Ítaca.
Ao reconhecer a constitucionalidade da Lei da Ficha Limpa, o Supremo Tribunal Federal deixou claro que retirou a cera dos ouvidos e se deixou seduzir pelo canto das sereias.
Com o ato, o STF pulverizou um princípio basilar das civilizações democráticas e livres, que é o que determina que nenhuma lei nova poderá alcaçar fatos do passado, exceto para beneficiar o réu. A lei em questão pune todos que tenham praticado atos, na época, lícitos, mas que agora tipificados. E mais, até mesmo aquele que por ventura tenha cumprido condenação imposta por lei anterior mais branda não estará livre de voltar ao rol dos culpados. É, de fato, um situação surreal, para não dizer absurda.
Não quero, com isso, condenar a Lei da Ficha Limpa, que reputo importante e necessária. Condeno, isto sim, o seu viés justicialista que afronta princípios consolidados e extremamente importantes para as sociedades de todas as épocas. Relativisar o princípio da anterioridade da lei que pune o político certamente irá facilitar o alastramento desse relaxamento de princípios para outras áreas, para outras categorias de cidadãos.
Não tenham dúvidas, - a segurança jurídica em nosso país foi ferida de morte. O STF cedeu ao chamamento das sereias. O Brasil fica cada vez mais distante de sua Ítaca.

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